terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Restaurante

03/2009


Os restaurantes zona-lestinos são tomados da nítida ausência da estética perfeita, envolta por um estrondoso ruído de estômago roncando às 11:30, de quem começou cedo no laboro, de quem tem fome das mesmas coisas.
Eu me atardava na sala do escritório entediada com a presença de mim mesma, visto que as vezes não caibo em mim e não sei pra onde lançar o excesso que me transborda.
Naquele dias ganhei as ruas rumo à sintonia sincopada das panelas de pressão, na terça-feira de bifê-a-rolê e gran finale com salada de frutas e tempo nublado.
Chamou-me a atenção um senhor de idade avançada, ou diria, de muitos dias vividos, se bem vividos, de boina no cocuruto e costelas afinadas pelo paletó de alfaiataria.
Da porta que se adentrava avistava-se um eu perplexo na mesa, observando seu caminhar paulatino, enganchado nos braços de seu filho, a fitar-me com impressionante expressão nos olhos, cansados, mas de uma firmeza estarrecedora.
Não sei se por não conseguir movimentos nos olhos ou se simplesmente o verde da minha blusa me fez bonita, ele sentou-se, quase atrofiado, à cadeira, sempre olhando, com severidade, quase peço desculpas por não sei o que e ofereço minha mão à palmatória.
O vento que se fez com sua passagem revelava um odor característico da pele envelhecida. Seus ombros curvos, seus cabelos branco-amarelados e uma barba rala, um corpo que não se agüenta, como o meu, as vezes no escritório.
Enquanto esperava a guarnição, vez ou outra limpava o nariz nas mangas da blusa. A coriza parecia aborrecê-lo. Tive a impressão que se ele pudesse, arrancaria fora seu próprio nariz.
Não falava, não sei se por estar gasta a sua voz, seu repertório, ou se vencido por alguma anomalia de seu corpo velho, de seu velho corpo.
Seus traços me remetiam à um passado que não era meu, mas mesmo não sendo meu o passado, me senti no direito de vasculhar o frescor juvenil que um dia teve aquele corpo franzino. Sua voz já deve ter entoado cânticos dodecafônicos, suas pernas, percorrido jornadas infindáveis em busca do seu futuro, que hoje é o que vejo. Suas mãos fizeram, ou não fizeram, ele pode nesse momento, enquanto mastiga, estar pensando em como teria sido se...
Imagino que ele sempre pensa: e se... Imagino que ele pensa muitas coisas e por não falar, talvez não escutar também, tenha desenvolvido leitura labial.
Ele parecia sentado, trancafiado num limbo impessoal, arfante, tentando ganhar a pouca-luz do restaurante empestado do cheiro de bacon acebolado.
Quando ofereceram-lhe farofa, seu filho a responder por ele, disse um não redondo. E eu vi seu olhar pedinte a acompanhar a cumbuca e sua boca salivar. Privaram-lhe de um prazer, provavelmente com medo de que ele engasgasse.
Essa é a convivência mais árdua: você preso ao seu corpo com você mesmo. A mais íntima relação, tão íntima que deve ser enfadonha. A rotina torna-se mais certa e raramente haverá imprevisibilidades, surpresas, conquistas, tudo tanto-faz-como-tanto-fez.
Tenho a impressão que ele não quer fazer sentido. Parece vangloriar-se pela íntima certeza de já ter sido e de já ter tido. Não precisa mais significar-se.
Ele se alimenta frugalmente. Teria tido colesterol nessa vida? Estresse? Sofreria ele com os males modernosos e contagiantes das síndromes do pânico? Teria ele medo de uma catástrofe ambiental? Será que ele tem medos ou a idade o transformou num homem de coragem? Será que ele acredita em Deus? Pressente a morte? Tem mal de Alzheimer? Será que viveu uma grande paixão? Será que se sente punido por não ter sido um ser humano melhor ou será que aceita passivamente, com subserviência os desígnios da vida e seu presente preso dentro de si mesmo?
Os gestos de seu filho, aparentemente espirituoso, talvez tenham saído ao pai.
Percebo a força de sua genética, são muito parecidos. Dever ter netos, talvez também bisnetos. Deve ser viúvo e ter uma nora que torce para que ele morra logo e desocupe o quarto dos fundos para fazer ali o seu centro de estética.
Ele me olha enquanto almoço. Eu o olho enquanto almoça. Ele nem imagina quantas perguntas eu tenho. Eu não sei se ele teria as respostas.
Eu o amei sem o egoísmo que costumo amar as coisas que me prendem a atenção, dele eu não teria nada. Ele não me ofereceria nada. Se pudesse falar, acho que diria que não tem mais nada a perder.
A propósito, não comeu o prato do dia. Almoçou um bocado de hortaliças e atreveu-se à um pouco de massa regada de molho pálido. Nada em sua mesa era iridescente.
Deve ter sentido vontade de palitar os dentes, suas mãos não tinham muita firmeza, conteve-se. Tudo nele era silêncio.
Desertou a mesa me deixando tão muda quanto cheguei. De novo deixou no ar o cheiro de sua velhice. Nunca haveria de pensar que tamanho silêncio tivesse tantas palavras.
Ainda me restam 20 minutos para a salada de frutas...