domingo, 25 de setembro de 2011

Coletivo

Houve um tempo em que eu não me desligava um segundo. Atenta aos pontos de referências característicos da Zona Leste de São Paulo. Até para embarcar no trem os olhos eram espertos, as mãos seguras, bem dizer, agarradas à pilastra de sustentação dos tetos da Maria-fumaça.
Quase nunca eu entrava sossegada. Era praticamente “cuspida” para dentro. O cabelo tão bem penteado... É um balé o movimento da cabeça para não deixar arrepiar um fio daquele coque trabalhoso.
Percebia que com fones nos ouvidos o mundo lá fora parecia menos selvagem. Acho que a maioria das pessoas pensam da mesma forma. Hoje, consegue-se ouvir os pingos da chuva do lado de fora, na linha férrea. Isso assusta, mas consigo dormir o resto de sono que o tempo me surrupiou durante a noite. Aliás, o tempo tem sido implacável...
Particularmente não gosto de encontrar pessoas conhecidas durante o meu percurso. Finjo que estou dormindo ou fixo o olhar na paisagem do lado de fora das janelas embaçadas, vandalizadas, cheias de recados amargurados de pessoas que juram amor eterno.
O trem não circula mais de portas abertas. O maquinista repete isso com muito orgulho, de cinco em cinco minutos, mas os pés para fora garantiam uma cabeça para dentro. Agora, de portas fechadas, quem vê lá da rua, imagina centenas de artistas fazendo poses, amassando a boca e o nariz na janela para fazer graça pra criançada. Que maravilha!
As vezes me pergunto como alguém possui a façanha de movimentar o maxilar para comer uma coxinha, um croquete qualquer, exalando um cheiro de ontem dentro de um espaço mentiroso. O cheiro procura desesperado a saída e chega a pensar em suicídio. Instala-se nas narinas mais próximas para sentir-se seguro. Quase sempre são as minhas.
Hoje em dia parece que não vejo ninguém. Nem meço a distância entre a plataforma e o trem. Solto as mãos das pilastras para prestigiar o comércio do coletivo, sem medo de cair. Impossível alguém cair. Se eu tirar meu pé do lugar, perco território.
Antes a viagem durava cerca de uma hora e meia. De uns dias pra cá, eu acordo e já cheguei ao meu destino, não sinto nada.
Será que estou ficando desatenta? Cansada? Não tenho reparado se meus antigos pontos de referência mantêm a textura de sempre nas paredes.
É tudo silêncio. As pessoas apenas sussurram as histórias que outrora enchiam minha cabeça de imaginação e até rendiam alguns pontos nas provas do ENEM. O barulho, hoje, mais suave dá máquina, educa o tom das pessoas. Até os pedintes respeitam o seu sono. Quando você acorda, encontra entre suas pernas um papel apelativo que quase sempre começam com “desculpe incomodar”.
As coisas continuam acontecendo. A disputa pelo espaço ainda é motivo de caras tortas, olhares fuzilantes e cotoveladas provocadoras. Mas as pessoas falam mais baixo. É uma má educação mais elegante. Com batom e cheiro de “avanço”.
Esse silêncio chega a ser um insulto. Os olhares só se perdem nas brechas dos corpos para tentar flagrar um “encoxando” o outro. É uma neurose, todo mundo desconfiado e fingindo que está lendo.
Dinamizaram aqueles pontos da ferrovia. As pessoas querem ficar com a cara das novas estações. Tentam apagar da memória o antigo “sukitão”.
O trem circula com menores intervalos de tempo. (Mas está sempre aguardando a liberação da sinalização).
Os vagões possuem maior espaço físico. (Para comportar melhor o número de pessoas que disputam o mesmo ar com poucos vidros abertos e constantes beliscões nas nádegas).
O maquinista está mais gentil, desejando a todos uma boa viagem, dizendo bom dia, boa tarde e boa noite.
Os assentos preferenciais são sempre preferência. É o que mais se destaca com cores quase sempre suaves. E como temos idosos, gestantes e agora, pessoas com IMC maior que 40 também têm preferência.
Me lembro quando minha mãe me colocava de castigo, abraçada à minha irmã e pedia que disséssemos uma a outra “te amo”, a todo momento, quando na verdade eu estava louca pra descontar o puxão de cabelo. Desde então nunca mais tive essa sensação. No trem me sinto nostálgica. Vez ou outra me vem à mente esses castigos que minha mãe aplicava.
Não há nenhum outro lugar onde somos tão unidos: ouvimos as músicas dos outros, nos olhamos profundamente, nos tocamos, ficamos tão próximos! E olha que nem foram as nossas mães que mandaram... a coisa flui! Em instantes você percebe o quanto isso é natural. O quanto é uma boa desculpa para o seu mau humor durante o dia de trabalho.
O mais engraçado é que a carne amolece com tanto aperto. Saio do trem mais humana e com a minha criatividade mais aguçada.
De manhã sempre tem fogos na região onde desço. Então agarro minha bolsa e sou “cuspida” para fora. Piso na plataforma e digo: - “ah, areia de Copacabana! Só aqui temos fogos fora do Reveillon”.
Percebam: nem tudo está perdido!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Foi-se embora


Desde que surgiste em meu caminho
Secaste minhas palavras
Como se na vida não pudéssemos ter tudo
Ainda que esse tudo represente quase nada
Mas quando decidiste ir embora, que maldade!
Devolveste a caixa de presente com meu coração pequenininho
Mas me voltaram as letrinhas, aos poucos, com saudade
Ora, se fizeste de mim tão triste, tão sozinha nessa dor
Que assim seja escrito
Porque foste, um dia, sem palavras, o meu amor.
"Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventUra sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar adultério - o assim chamado -, que é quase sempre decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com fritas."

(F. Gular)

A Marcela 2





A Marcela, a menina engraçadinha do 172 é mesmo uma figurinha:
da pipoca, prefere o piruá,
do pão, a casquinha que cai sobre a mesa, sem geléia e sem manteiga,
gosta de abacaxi e morango azedo, toma três banhos por dia.
come uma bacia de alface sem tempero e exige o tomate, com rebeldia
Essa menininha...
Só podia ser da Marcelolândia.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Marcela

A Marcela é uma menina muito engraçadinha que mora alí no 172.

Dizem que quando ela nasceu não chorou, só fez um barulhinho parecido com “nhémmm”,
Aqui no condomínio ela gosta de caminhar sozinha no auge de seus 500 e poucos dias de vida (bem vividos). Já com muito equilíbrio, não quer que ninguém segure a sua mão, e corre balançando as cadeirinhas quase sempre sem direções definidas.
Ela fala kiki (xixi), cocô, mamãe, papai, vovô, vovó, kuko (suco), e cantarola o dia todo a canção do porquinho Astolfo: aaaaaaaaaaaaaaii, aaaaaaaaaii (é só essa parte que ela sabe). Mas ela gosta de cantarolar muitas outras canções, sim.
Acho que a Marcela será uma grande bailarina, porque enquanto entoa suas canções, ela dança magnificamente alguns passinhos improvisados.
Quando mamãe e papai chamam a atenção da pequena, ela fecha os olhos e suspira simulando um grande arrependimento. Talvez seja também uma grande atriz tal qual o papai.
A Marcela e filha do Marcelo e vive na Marcelolândia.
Marcelo, Marmelo, Martelo? Não, esse não é seu pai...
A mãe dela é pedagoga, executiva, depiladora, manicure, maquiadora, cabeleireira, escreve nas horas vagas e lê histórias e parlendas.
Ela tem um porquinho cor-de-rosa e um elefante cinza que canta em inglês. Um bicho que repete o dia todo: “ que delícia, eu sou um gênio”, e uma boneca chorona.
A Marcela é uma menina muito engraçadinha que mora alí no 172, alí na Marcelolândia, de onde sempre se ouve essa canção: aaaaaaaaaaaaaiiiiiiii, aaaaaaaaaaaaaaaaiii, aaaaaaaaaaaaaaaiii, aaaaaaaaaaaaaii, a gente ainda é porquinhinho mas já sabe se virar...

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Restaurante

03/2009


Os restaurantes zona-lestinos são tomados da nítida ausência da estética perfeita, envolta por um estrondoso ruído de estômago roncando às 11:30, de quem começou cedo no laboro, de quem tem fome das mesmas coisas.
Eu me atardava na sala do escritório entediada com a presença de mim mesma, visto que as vezes não caibo em mim e não sei pra onde lançar o excesso que me transborda.
Naquele dias ganhei as ruas rumo à sintonia sincopada das panelas de pressão, na terça-feira de bifê-a-rolê e gran finale com salada de frutas e tempo nublado.
Chamou-me a atenção um senhor de idade avançada, ou diria, de muitos dias vividos, se bem vividos, de boina no cocuruto e costelas afinadas pelo paletó de alfaiataria.
Da porta que se adentrava avistava-se um eu perplexo na mesa, observando seu caminhar paulatino, enganchado nos braços de seu filho, a fitar-me com impressionante expressão nos olhos, cansados, mas de uma firmeza estarrecedora.
Não sei se por não conseguir movimentos nos olhos ou se simplesmente o verde da minha blusa me fez bonita, ele sentou-se, quase atrofiado, à cadeira, sempre olhando, com severidade, quase peço desculpas por não sei o que e ofereço minha mão à palmatória.
O vento que se fez com sua passagem revelava um odor característico da pele envelhecida. Seus ombros curvos, seus cabelos branco-amarelados e uma barba rala, um corpo que não se agüenta, como o meu, as vezes no escritório.
Enquanto esperava a guarnição, vez ou outra limpava o nariz nas mangas da blusa. A coriza parecia aborrecê-lo. Tive a impressão que se ele pudesse, arrancaria fora seu próprio nariz.
Não falava, não sei se por estar gasta a sua voz, seu repertório, ou se vencido por alguma anomalia de seu corpo velho, de seu velho corpo.
Seus traços me remetiam à um passado que não era meu, mas mesmo não sendo meu o passado, me senti no direito de vasculhar o frescor juvenil que um dia teve aquele corpo franzino. Sua voz já deve ter entoado cânticos dodecafônicos, suas pernas, percorrido jornadas infindáveis em busca do seu futuro, que hoje é o que vejo. Suas mãos fizeram, ou não fizeram, ele pode nesse momento, enquanto mastiga, estar pensando em como teria sido se...
Imagino que ele sempre pensa: e se... Imagino que ele pensa muitas coisas e por não falar, talvez não escutar também, tenha desenvolvido leitura labial.
Ele parecia sentado, trancafiado num limbo impessoal, arfante, tentando ganhar a pouca-luz do restaurante empestado do cheiro de bacon acebolado.
Quando ofereceram-lhe farofa, seu filho a responder por ele, disse um não redondo. E eu vi seu olhar pedinte a acompanhar a cumbuca e sua boca salivar. Privaram-lhe de um prazer, provavelmente com medo de que ele engasgasse.
Essa é a convivência mais árdua: você preso ao seu corpo com você mesmo. A mais íntima relação, tão íntima que deve ser enfadonha. A rotina torna-se mais certa e raramente haverá imprevisibilidades, surpresas, conquistas, tudo tanto-faz-como-tanto-fez.
Tenho a impressão que ele não quer fazer sentido. Parece vangloriar-se pela íntima certeza de já ter sido e de já ter tido. Não precisa mais significar-se.
Ele se alimenta frugalmente. Teria tido colesterol nessa vida? Estresse? Sofreria ele com os males modernosos e contagiantes das síndromes do pânico? Teria ele medo de uma catástrofe ambiental? Será que ele tem medos ou a idade o transformou num homem de coragem? Será que ele acredita em Deus? Pressente a morte? Tem mal de Alzheimer? Será que viveu uma grande paixão? Será que se sente punido por não ter sido um ser humano melhor ou será que aceita passivamente, com subserviência os desígnios da vida e seu presente preso dentro de si mesmo?
Os gestos de seu filho, aparentemente espirituoso, talvez tenham saído ao pai.
Percebo a força de sua genética, são muito parecidos. Dever ter netos, talvez também bisnetos. Deve ser viúvo e ter uma nora que torce para que ele morra logo e desocupe o quarto dos fundos para fazer ali o seu centro de estética.
Ele me olha enquanto almoço. Eu o olho enquanto almoça. Ele nem imagina quantas perguntas eu tenho. Eu não sei se ele teria as respostas.
Eu o amei sem o egoísmo que costumo amar as coisas que me prendem a atenção, dele eu não teria nada. Ele não me ofereceria nada. Se pudesse falar, acho que diria que não tem mais nada a perder.
A propósito, não comeu o prato do dia. Almoçou um bocado de hortaliças e atreveu-se à um pouco de massa regada de molho pálido. Nada em sua mesa era iridescente.
Deve ter sentido vontade de palitar os dentes, suas mãos não tinham muita firmeza, conteve-se. Tudo nele era silêncio.
Desertou a mesa me deixando tão muda quanto cheguei. De novo deixou no ar o cheiro de sua velhice. Nunca haveria de pensar que tamanho silêncio tivesse tantas palavras.
Ainda me restam 20 minutos para a salada de frutas...